Como a universidade pode reagir
O ataque do governo Bolsonaro deve ser a pior ameaça que o sistema universitário enfrentou desde que quando começou a ser montado, nos anos 1930. Embora as universidades estejam, em tese, resguardadas por dispositivos administrativos e constitucionais, o governo federal já deixou claro que está disposto a destruir o que não consegue controlar.
Embora Bolsonaro tenha sido eleito, em parte, apoiado no fantasma do marxismo cultural, as evidências sugerem que a visão que a sociedade tem da universidade não é ruim. E é preciso lembrar que as universidades até agora se esforçaram pouco para conquistar uma boa imagem junto ao público. Essa postura precisa mudar rapidamente se a universidade quer sobreviver à avalanche.
Além da inação, minha maior preocupação é que uma eventual campanha em defesa da universidade fique restrita ao público de esquerda. Sindicatos, associações docentes e militância de esquerda podem ser importantes, mas devem tomar cuidado para que o movimento não seja rapidamente reapropriado pelo bolsonarismo como comprovação do aparelhamento da instituição pelo marxismo cultural.
Claro, sindicatos, associações e militantes têm todo direito de defender a universidade dos ataques -- sindicatos e associações inclusive têm o dever institucional de fazê-lo. Mas me parece claro que uma ação que pareça vir apenas da esquerda estaria fadada ao fracasso, se não pela capacidade do governo de ressignificar a resistência, também pelo fato da esquerda estar isolada e ter pouco alcance fora do seu próprio meio.
Por outro lado, uma ação bem pensada e organizada teria boas condições de sucesso:
- A universidade pública é ampla e está espalhada por todo o território nacional. Segundo o censo da educação superior, temos cerca de 2 milhões de estudantes matriculados nas universidades públicas do país, algo como 1% da população. Uma ação de mobilização e informação centrada exclusivamente neste grupo que será imediatamente afetado e orientada para seus familiares, amigos e vizinhos teria enorme impacto.
- A universidade brasileira já prestou grandes serviços ao país e sua contribuição nunca foi adequadamente comunicada ao público. Um bom levantamento apresentando contribuições que podem facilmente ser identificadas, na área de tecnologia agrícola, exploração de petróleo, medicina, tecnologia aeroespacial, desenho de políticas públicas e aperfeiçoamento do ensino ajudariam a melhorar a imagem da universidade junto ao público. A universidade também é uma grande formadora de lideranças culturais para além do estigma de esquerdismo que o governo quer colar nela e seria conveniente ressaltar esse papel.
- Os cursos de humanidades, tão achincalhados pelo governo, são o setor que forma a maior parte dos professores do país, de história, geografia, letras, pedagogia, filosofia e sociologia. É preciso lembrar também que professores são a terceira maior categoria profissional do país depois dos empregados domésticos e dos operários da construção civil. A formação de professores, seja para repor o quadro de aposentados, seja para ampliar o sistema e oferecer formação continuada para os que estão em exercício é chave para melhorar a educação de milhões de crianças e adolescentes do ensino fundamental.
- A universidade passou recentemente por uma enorme reforma no seu sistema de acesso com a introdução de cotas e outras políticas de inclusão. Essa abertura da universidade aos mais pobres mudou a trajetória de milhares de estudantes que saíram da pobreza e viram um novo mundo de oportunidades profissionais se abrir. É preciso que a sociedade conheça essas histórias.
- As universidades têm enorme impacto econômico principalmente nos campi localizados no interior. Cidades inteiras Brasil afora dependem da economia gerada pela universidade, não apenas do mercado consumidor de servidores e professores, como de toda a dinâmica econômica gerada pela atração de estudantes. Um corte drástico no orçamento das universidades vai gerar grande prejuízo que deve ser ressaltado nestas regiões em defesa da universidade.
A situação atual exige uma mudança de repertório de mobilização. Formas tradicionais seriam bastante contraproducentes neste cenário. Greves seriam rapidamente capturadas como comprovação da inutilidade da universidade e o governo Bolsonaro já demonstrou que não dá atenção para protestos que não venham da base que o elegeu. Por isso, uma campanha bem desenhada, tocada por um grupo claramente plural, sem financiamento que não seja doação voluntária e orientada para a população em geral pode dar ótimos resultados e quem sabe fazer recuar esse perigoso ataque.