terça-feira, 5 de julho de 2022

Fernando Horta na veia

 Washington, Olivetto e o buraco é mais em baixo

Em 2008, 20% do PIB do mundo evaporou. Em termos quantitativos a crise de 2008 foi maior do que a de 1929. Em 2010, a zona do Euro entrou em nova crise e em 2014 o relatório do Banco Mundial estampava na sua introdução a frase “not yet out of the woods”, sinalizando que o mundo ainda não se recuperara do tombo gerado pela especulação com derivativos nos EUA.

Contudo, seguindo o mantra do “empreendedorismo”, na crise os ricos veem “oportunidade”. Enquanto jornais como o Financial Times ou o The Wall Street Journal lançavam artigos questionando a viabilidade do neoliberalismo (e mesmo do capitalismo) os ultra-ricos perceberam que era preciso não deixar perceber. Lançaram uma campanha mundial pela glamourização da exploração, da acumulação e do entesouramento. Como centenas de bilhões de dólares escoando por “think tanks” até chegarem a jovens apedeutas liberalóides pelo mundo todo, no pós-crise de 2008, se construiu uma sociedade em que o dinheiro é o distintivo da competência e do saber. A opinião de quem tem dez mil reais na conta é mais correta do que a de quem tem cem reais e muito inferior a opinião de quem goza de milhões.

Na hierarquia da acumulação, milionários legitimavam-se pelo “mérito” ao mesmo tempo que o mundo entrava num momento de desigualdade social e econômica maior do que o pré-primeira guerra mundial (1910-1914). Guerra que, aliás, historiadores concordam que também foi causada pela enorme desigualdade tomada em termos mundiais. Hoje, milionários são chamados a falar de arte, educação, política e todo e qualquer assunto em que suas contas bancárias sejam avalizadoras de correção, mérito, moral e honestidade.

Washington (a capital) financiou todo esse movimento como forma de legitimar-se. Se no século XX a pobreza e a riqueza estavam (fantasiosamente) circunscritos a hemisférios – oriental e ocidental, respectivamente – o século XXI não conseguiu esconder que onde existe riqueza excessiva, ao lado está a pobreza que a financia. As teorias econômicas do século XX sobre “como todos podem ganhar com o livre-mercado” simplesmente não suporta o peso das evidências do mundo real no século XXI. A COVID criou ainda um outro nível de desigualdade, a desigualdade imunológica. A verdade é que no século XXI, para alguns o planeta (o ar, a água e a comida) serão tóxicos e ameaçarão as suas vidas; enquanto para outros – que podem pagar vacinas – o planeta será apenas a sua carinhosa “casa”. Ou melhor, seu playground.

Washington (o publicitário) é apenas o efeito mais aborrecido deste estado de coisas. É a materialização da vontade de explicar a meritocracia por herança. O medo de que o mundo perceba que não há nenhuma relação entre entesouramento, acumulação, mérito ou distinção intelectual faz com que estes velhos endinheirados olhem para seus filhos e vejam os patinhos feios com seus sobrenomes. E quando os velhos morrerem, os patinhos precisarão nadar sozinhos. E ainda que possam comprar iates, haverá um momento em que – pensa o velho – não conseguirão esconder suas mediocridades.

Washington (o publicitário) faz parte do grupo de ricos que quer parar o estado de coisas neste momento. Momento em que suas cargas genéticas só são bem-sucedidas pelas suas contas bancárias. A partir daí existe uma necessidade de criar barreiras culturais de proteção aos bem-aventurados. Convencer a todos que eles são tocados pelos deuses e diferente dos mortais. Por isso podem usar iates, jatinhos e serem vacinados enquanto o seu entorno passa fome, frio e necessidade. No absolutismo, dizia-se que eram tocados por Deus. No século XX, criou-se a mito do “self made man”. E no século XXI precisa-se explicar os “self made man” de 20 anos de idade.

Washington (a capital) criou temos como “mindset”, “marketing de relacionamento”, “benchmarking”, “counseling”, “mentoring”, para esconder os antigos “exploração”, “expropriação”, “alienação” e etc. Washington (a capital) precisa de Washington (o publicitário) para que as pessoas não vejam a realidade e sigam perdidas no mundo do desespero. Washington (o publicitário) precisa de Washington (a capital) para se certificar que seus rebentos não vão se arrebentar quando a maré mudar.

O fato é que, no final das contas, “as empadinhas de camarão” continuam a ser servidas apenas a quem não sabe fazer empada e nem pescar camarão. E a “pós-graduação de vida” é uma especialização caríssima que os que fazem se formam sem cumprirem a carga horária mínima e sem apresentar trabalho de conclusão de curso. Tim-tim ...

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