sábado, 12 de setembro de 2009





Nova Novela


Não acompanho novelas. Não gosto. A última que assisti acho que foi Top Model. Sei da qualidade das produções afinal se tornou o principal produto da Poderosa.
E por falar em poder, novela no Brasil exerce um fascínio louco principalmente nas mulheres. Sejam elas de qualquer classe social ou intelectual. Ontem quase não houve reunião final após o jornal por conta da mulherada que estava ouriçada para assistir ao último capítulo. O bom e polêmico Tom Capri me escreveu algumas linhas sobre o folhetim que terminou ontem e tem o repeteco hoje. Divido com voe porque diferentemente das novelas, o texto faz pensar.


Caminho das Índias: entenda por que ela já é a melhor novela da televisão brasileira


Torci tanto para que Caminho das Índias tivesse o mesmo final de Romeu e Julieta. Maya entregasse o filho a Bahuan e se matasse. Raj saísse do coma, descobrisse o que acontecera com Maya e também se suicidasse. Pena não ter sido assim. Só a tragédia nessas proporções e com essas dimensões daria desfecho digno, sério e convincente a esta que já é, com certeza, a mais corajosa novela produzida pela televisão brasileira. Isto porque o tema central é diretamente a luta de classes, pela primeira vez abordada de forma explícita e sem rodeios na nossa televisão. E não há nada mais dramático que a luta de classes, que move e faz a história, e pode acabar com a humanidade se nada de imediato for feito para conter seu lado altamente predatório, ainda que concorra também para o avanço.


A trama é shakespeareana desde o início. E a luta de classes é abordada na novela --- o que é mais emblemático ainda --- justamente onde ela é exageradamente sórdida: na Índia, país decadente com suas castas representadas pela família Ananda. Estas reprimindo e fazendo oposição aos dalits, situação milenar que produziu o maior bolsão de miséria, preconceito, alienação e degradação de que se tem notícia na história da humanidade.


Não é segredo para ninguém, a Índia é uma nojeira, o suficiente para envergonhar a espécie humana. Está afundada na maior pobreza de que se tem notícia, daí ser o país mais religioso. Afinal, a religião é o ópio do oprimido miserável. Se o Ganges não apodreceu tanto quanto o Tietê e o Pinheiros, por outro lado todos os indianos ainda insistem em se banhar em suas águas poluídas, quando não as bebem para se purificar.


O rio recebe não só um sem-número de cadáveres que se putrefazem diariamente em seu leito, como milhões de hindus banham-se nele para expurgar os pecados e ter vida melhor em qualquer reencarnação futura. Aos cadáveres, somam-se os restos mortais de animais e detritos industriais de todos os tipos, espalhando doenças por toda a Índia, uma vez que sua água é considerada bebida sagrada no país.


É verdade, dourando a pílula, a novela esconde essa Índia que já atingiu o limite da podridão, mas mostra com clareza a que ponto chegou a luta de classes na Índia. Fica claro que o indiano não é mais um ser humano, é hoje o não-homem afundado no mais insidioso preconceito de classes e na mais torpe miséria. Ou melhor, se não teve sorte e nasceu como dalit, ele jamais conseguirá libertar-se desta condição. Sua inferioridade é uma sina.


A divisão em classes, na sociedade primitiva, foi não só o que aconteceu de melhor para a humanidade, mas também de pior. De melhor porque impôs ao indivíduo a tarefa de ter de trabalhar para seu semelhante, seja em troca de alimentos, teto e proteção (como escravo ou servo), seja em troca de salário (como assalariado).

A partir de então, o ser humano passou a ter de trabalhar em escala para o próximo, a fim de poder sobreviver, e isto resultou na criação e produção de infindável número de inventos e bens materiais que concorreram, num certo sentido, para todo esse avanço experimentado pela humanidade, garantindo-lhe reais e concretos benefícios. Da bicicleta ao telefone celular, incluindo a maioria dos bens de consumo que temos hoje, a humanidade avançou inegavelmente por causa da divisão em classes.

Por outro lado, a luta de classes foi também o que de mais destrutivo e pior aconteceu entre nós, os humanos, na medida em que o indivíduo, ao se desmembrar em classes, desagregou-se e desirmanou-se. Todas as espécies precisam ser solidárias, senão não conseguem sobreviver. Não há nenhuma espécie viva em que seus exemplares podem se dar ao luxo de dispensar o convívio com o próximo.




Em qualquer espécie animal, um depende do outro para ser e existir, ou seja, para sobreviver. E a espécie que mais precisa e depende do outro é a humana, porque pensa. Isolado da sociedade no momento em que nasce, e criado sem o menor contato com alguém de sua espécie, o indivíduo acaba se tornando quase que um animal irracional, difícil de ser reconhecido como ser humano, a não ser pela sua aparência.

A história registra inúmeros casos assim, de Tarzã, Kaspar Hauser e Nell ao menino de Aveyron, que inspirou François Truffaut a fazer o filme O Garoto Selvagem, baseado em fatos reais. Encontrados anos depois, esses indivíduos não sabiam falar, não andavam como bípedes, comiam alimentos crus e com as mãos, balbuciavam sons desconexos, faziam suas necessidades na frente dos outros e não apresentavam nenhum tipo de freio.

Esta é a prova de que a espécie humana é a mais solidária de todas. E ao deixar de sê-lo --- como ocorreu quando da divisão de classes ---, passou a pôr em risco sua própria sobrevivência. É o que começou a acontecer no momento em que uma classe, a dominante e geralmente minoritária, passou a subordinar e oprimir a outra, sempre majoritária. É daí que resultou o homem, ou melhor, o não-homem de hoje, esse ser egoísta que tem o próximo como inimigo e que acredita ser a vida assim mesmo, a ponto de ter levado Jesus a gritar um dia indignado e em desespero: “Somos todos irmãos!”

Mais do que isso, no momento em que se dividiu em classes antagônicas, o ser humano passou a praticar contra o próximo a mais sórdida e hedionda forma de violência de que se tem notícia: o roubo de força de trabalho. Ao trabalhar para outro, o indivíduo, sem ter a menor consciência disso, passou a ter todos os dias trabalho expropriado e roubado, principalmente quando em troca de salário, que não passa de truque.

Seja escravo, servo ou assalariado, o indivíduo sempre produz muito mais em valores para quem trabalha do que os valores que recebe na forma de salário. Tomemos o exemplo de um trabalhador médio de uma montadora. Vamos supor que ele garanta à montadora, só com seu trabalho, o equivalente à produção de vinte veículos por mês, os quais somados valem no mercado 500 mil reais.

Ou seja, o trabalho desse operário produz 500 mil reais em riquezas para a montadora, na forma de veículos, o que significa que sua força de trabalho vale 500 mil reais para o capitalista. No entanto, esse mesmo operário recebe sempre um salário, vamos supor, de 5 mil reais por mês. Se passa a produzir um milhão de reais mensais em vez de 500 mil, em valores, ainda assim continuará recebendo o mesmo salário de 5 mil por mês. A diferença entre o que ele produz em valores para o capitalista e o que recebe de salário (mais-valia) é embolsada por este, configurando-se aí o roubo de força de trabalho.

Ora, a forma pela qual o homem trabalha --- ou seja, a forma pela qual a espécie luta duramente pela sobrevivência --- é que é o ‘deus criador’ que produz nossa realidade, nosso comportamento, nossa ética, nosso mundo interior e exterior, isto é, tudo o que compõe o mundo em que vivemos. Assim, é a forma pela qual o homem trabalha, hoje caracterizada por esse roubo diário de força de trabalho, o que de fato produz a nossa realidade.

E que realidades produz a vida capitalista hoje? A do preconceito, do egoísmo, das vaidades, das novas doenças que se multiplicam, da religião como anestesiante, das drogas, do ódio, da depressão, da síndrome de pânico e do suicídio, enfim, da tragédia diária, o que só foi mostrado pela primeira vez corajosamente na televisão brasileira por Caminho das Índias.

A sociabilidade que aí está é reflexo direto, resultado mesmo, desse roubo de força de trabalho em que se assenta a vida capitalista. Por ser resultado de toda essa violência, ela (a nossa realidade) é também violenta e inóspita, em que não existe mais solidariedade.

Não que Glória Perez tenha feito uma obra-prima. Caminho das Índias tem tantos pecados quanto essas grandes virtudes aqui já apontadas. Mas eles são menores diante da grandeza do caminho apontado, e que definitivamente não é o das Índias. É fato, se em novelas passadas a autora acabou com o preconceito contra os portadores de Síndrome de Down, desta vez tivemos uma aula do que verdadeiramente é a esquizofrenia e um alento aos pais de filhos esquizofrênicos. Há tratamento para a doença e ela pode ser controlada, ficou claro para todos nós, e muitos brasileiros respiraram aliviados. Aí está outra virtude do trabalho de Glória.




Mas é lamentável a leitura que a autora fez do psicopata. Esta se assentou na visão psicanalítica e psiquiátrica segundo a qual o psicopata já nasce psicopata e vai morrer psicopata, não se sabe por que, se por obra de Deus ou do Diabo. Tal qual um dalit, que a autora tanto defendeu na novela, o psicopata está condenado a carregar sua ‘impureza’ até morrer, nenhuma esperança é dada aos pais que têm filhos assim, a tragédia é inevitável.

É de perguntar por que Glória tenha instilado tanto veneno na figura do psicopata, transformando-o em vilão sem cura que já nasce com a ‘maldade interior’ como traço dominante em sua mente. Seria porque a autora teria perdido uma filha vítima de alguém que ela sempre considerou psicopata? Se for isto, claro está que, apesar de ser tão libertária quanto aos preconceitos, Glória ainda não conseguiu dominar nem se livrar deste.

Desde o início, a novela bateu nessa tecla, segundo a qual não há solução para o psicopata, quando o caso merecia a mesma consideração e tratamento dispensados ao esquizofrênico e, em outra novela, aos portadores de Síndrome de Down.

A rigor, a psicanálise e a psiquiatria são pseudociências. E o psicopata não existe em lugar nenhum. A leitura psicanalítica e psiquiátrica do psicopata, a mesma adotada por Glória, é rasa e equivocada. E seu próprio conceito de psicopata é inconsistente.

A psicanálise e a psiquiatria são pseudociências porque os problemas da mente têm sempre origem fora dela, nos traumas que a sociabilidade impõe às individualidades, todos resultado direto ou indireto dessa violação que é o roubo diário de força de trabalho.

E causas genéticas podem, sim, dar origem ao psicopata, mas mesmo elas são forjadas na sociabilidade, ao longo da história pregressa das sucessivas gerações, nos traumas sofridos pela sua linhagem no tempo, fixando assim uma espécie de predisposição.

Mas a mente não passa de filtro pelo qual passa o trauma. Nos desdobramentos, como conseqüência do trauma, o indivíduo acaba se deixando abalar e sofrendo de distúrbios mentais. Se você não destrói essa usina que produz diariamente o trauma --- o qual, vale repetir, ocorre sempre fora das mentes ---, ou se você ao menos não reduz a força dos traumas, não há solução concreta e verdadeira para problemas como da psicopatia.


Glória, a autora, caiu nessa armadilha. Ainda não percebeu que todo psicopata e os assassinos de sua filha são, como os dalits, resultado dessa sociabilidade que aí está, em que o ser humano, dividido em classes antagônicas, perdeu a capacidade de se reconhecer no próximo ou de ver o outro como irmão. Hoje, o enxerga unicamente como vilão.

Às vezes, contra o outro que agora é seu inimigo, o ser humano --- em situações-limite --- age sem qualquer demonstração de arrependimento ou remorso, como se fosse psicopata. Ou seja, essa estrutura social que aí está --- e que, como todas, cria e modula sua própria realidade ---, produz também a realidade igualmente espúria do psicopata. Enfim, a realidade em que estamos metidos --- assentada na violência que é o roubo de força de trabalho, a mãe da desirmandade --- produz com muita freqüência essas mentes frias e sem o menor arrependimento a que chamamos de psicopata.

Mas nada disso tem muita importância agora, Glória está absolvida de todos os seus pecados. Caminhos das Índias é mais um grito dela contra a luta de classes, que se globalizou e ainda perdura em todas as formações econômicas, da China à Bolívia, reproduzindo diariamente a miséria física e mental, daí ser trabalho vitorioso da autora.

A luta de classes no Brasil não é muito diferente da presente na Índia: traz igualmente as doenças que temos hoje e também fez do brasileiro mero objeto que deve consumir calado e aceitar sua condição de oprimido ou esquizofrênico, psicopata, dalit tropical, o que o valha. Por ser um problema que atinge a todos nós, e que Glória habilmente transportou para a Índia, Caminho das Índias merece prêmio.

Mesmo com todas suas deficiências --- até porque novela é apenas 15% de arte, o restante é merchandising e venda direta de produtos ---, Caminho das Índias se bastou como trabalho que acertou no essencial. Com certeza, já passou para a história como a melhor e a mais importante novela da televisão brasileira. Abraços a todos, Tom Capri.







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